quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Repassa

Carimbava, mais um papel velho com palavras horrorosas que certamente lembravam uma pintura abstrata sem graça, riscos azuis colocados sobre o nada, e que os outros fingiam entender.
Entregava a dose de promessa em troca do papel, em troca de esperar o relógio chegar ao ponto.
Pesava os olhos, esbarrou na caixinha de Clonazepam, impaciente levou a mão e coçou a sobrancelha, começou a organizar a fileira de remédios como se fossem prédios. Escutava a TV dizer alguma babaquice sobre os fogos, sobre a festa, sobre o tão aguardado ano já estar velho do outro lado. Riu.
As paredes deixaram de ser brancas:
-Murillo, boa noite!
- Boa noite, vocês fazem entrega hoje
-Não, infelizmente não.
Claro que estaria feliz se pudesse sair dali e entregar algo.
Murillo voltou para onde estava entretido e lembrou-se que haviam algumas etiquetas para arrumar, resolveu sentar-se no chão, fitas verdes, saquinhos de azuis, saquinho de saquinhos.  Pelo vidro do balcão,  entre as cores das caixinhas via a chuva de redinha cair, tão leve como uma ilusão, sentiu-se bem.
Envolto nele mesmo, não viu a moça perguntar algo, levantou rápido pisando nas fitas.
- Desculpe.
Um sorriso sem graça veio da moça.
-Esqueci a chave no contato do carro, está tudo lá dentro, será que posso usar o telefone
 daqui¿
Uma atmosfera engraçada se pesou sobre a balança da farmácia.
23:45, ninguém atendia telefonemas, não os que eram desnecessários.
- Espere um pouquinho, vou pegar uma água.
Ana passeou pela farmácia, silenciosa.
- Pra que serve esse Indacaterol?
-Serve pra colocar ar nos pulmões.
-Faz respirar melhor?
-Na verdade, não.
Cinco, quatro, três, dois, um.
-Feliz ano novo, Ana!
-Feliz ano novo, Murillo!

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